É curioso o fato do muçulmano usar a palavra zikr para nomear a oração. Zikr significa lembrar. Dessa maneira, orar para o muçulmano, antes de ter o sentido de súplica ou pedido, como o é para o cristão, tem o sentido de lembrar-se de algo fundamental. Para ele, a prece também inclui o sentido de súplica, mas não de suplicar proteção, ou “o pão nosso de cada dia”, ou que “perdoe nossas dívidas”, ou que “nos livre do mal”, ou que o inclua em lista de benesses celestiais de qualquer tipo. A súplica básica do muçulmano em prece é “não me deixe esquecer de minha origem divina”.
Sim, para o muçulmano, a identidade divina é o alvo básico e, por que não dizer, único, de suas preces. E ele exercita isso por toda a vida, várias vezes ao dia, para tentar escapar do esquecimento de sua procedência e essência divinas, de sua melhor parte. E, na prática, faz isso de duas maneiras, em voz alta (Zikr Jali) ou em voz baixa ou interior (Zikr Khafi).
Aquele que opta pelo Zikr Jali se esmera em gritar, com todo o coração, o nome do divino, como maneira de exercitar a completa entrega a ele, deixá-lo presente em todos os seus poros, em todas as suas células e átomos. E, claro, grita também com tal paixão, para não dar outra opção ao divino a não ser escutá-lo. Entregar-se totalmente na declaração em alto e bom tom é um exercício para si e uma demonstração de total amor e devoção ao divino.
Os que optam pelo Zikr Khafi, embora menos ruidosos, não são menos apaixonados ou devotados. Eles também se esmeram pela entrega de corpo e alma inteiros. Eles fazem cada prece em três momentos, na primeira a dizem do umbigo (das entranhas e do lugar onde estão gravadas as lembranças mais antigas de sua existência) para a mente, em um segundo, do coração para a mente e no terceiro, da mente para os céus.
Os sufis se apropriaram do conceito de zikr (súplica pela lembrança de sua ascendência divina) como forma de buscar o contato com o etéreo, mas acrescentaram, como é de seu feitio, arte e inspiração a esse ritual. Enquanto o muçulmano normal faz suas orações em palavras, o sufi as faz em danças, cantando, tocando instrumentos musicais, pintando ou até mesmo em forma de poesia.
Sim, para o sufi, o gesto pode ser ritualizado, o movimento pode se tornar uma forma de conversa com o Universo e sua essência. Para isso, ele se permite transformar-se por inteiro no canto ou na dança, por longos períodos de tempo, até que ele não exista mais, apenas o canto e a dança aconteçam através dele. O requisito para essa metamorfose é a entrega total, de corpo, coração e alma. Na maioria das vezes são gestos muito simples e fáceis, executados enquanto a pessoa tenta se colocar disponível para sua parte mais nobre, tenta se tornar aberto para escutá-la. São em geral cantos e movimentos hipnóticos repetitivos, que levam a um semi-transe.
Não se trata exatamente dançar com o divino, mas deixar que ele dance em você, através de você. Emprestar-se para que a dança do universo se incorpore e se traduza através de seus movimentos. E assistindo-a acontecer em seu corpo, você está assistindo e participando da canção do êxtase. Cada gesto seu torna-se um desabrochar da magia da vida. Não existe mais você, existe a dança universal e a consciência dela. Não existe mais separação entre você e o Universo. Não existe mais limite para ele em você. Não há mais o que lembrar, mas o que assistir, no presente. O tempo deixa de existir. Agora, é você e o mundo, no primeiro momento, os dois se tornam um só, em seguida vocês deixam de ser “um só”, repentinamente, não existe mais você, não existe mais o Universo, a gota se diluiu no oceano, existe apenas a consciência.
Participei de algumas cerimônias dessas na Índia e posso dizer que a sensação que nos acomete com a continuidade dos movimentos e dos “mantras” é de “embriaguez” ilimitada. Quando nos damos conta, estamos como bêbados, desprovidos de controle e com uma percepção de si e do mundo totalmente transformadas, tal e qual o alcoolizado. Mas conscientes. Totalmente conscientes e senhores de si. É sim arrebatador. No fim, nos percebemos por inteiro em nosso coração e uma amorosidade profícua transborda de nós. Não o amor por alguém em particular, mas o amor por tudo o que nos aparece pela frente naquele instante. A sensação é de alegria espontânea, sem motivo aparente. Nossa respiração não mais é nossa, a respiração acontece em nós, livremente.
Em algumas linhas de meditação fora do sufismo se procura fazer o mesmo, criar rituais que levem à memória do que Lao Tsé chamou de “nossa face original”, o momento em que éramos por inteiro inocência e disponibilidade para crescer, o momento em que estávamos integrados com o Cosmo, sem divisão, o momento em que aceitávamos que ele nos invadisse, circulasse por nossas artérias e veias e em que nos confundíamos com ele. Sim, a memória, sob o ponto de vista da meditação, pode ser o caminho que nos leva ao nosso propósito original, o do crescimento, realização e lucidez. E, isso é possível a qualquer um de nós. Qualquer um que se disponibilize para a exploração e experiência meditativas. Se nos entregamos com verdade a ela, essa nossa opção pela verdade nos aproxima do elo perdido; a sinceridade de nossa atitude, nos aproxima, de maneira direta e simples de nossa inocência original. E esta motiva e viabiliza nossa realização. Independente de qualquer circunstância externa de nossa vida.
O seu segredo mais essencial, você guarda num canto recôndito da memória dentro de você. Trata-se da chave mais simples, a que destranca todas as portas da complexidade. É um patrimônio seu, à espera de seu dono. Mas, é como em uma conta nominal de banco, só você pode decidir acessá-lo e usá-lo. Ninguém mais pode fazê-lo por você.
Pedro Tornaghi
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