O Paraíso Perdido

O último discurso de Buda foi sobre “samasati”, palavra sânscrita que pode ser traduzida como “lembrar com precisão”. Buda naquele momento sabia que ia morrer em seguida – dizem que os iluminados sempre sabem quando se aproxima sua hora – e pediu aos ouvintes e discípulos que não se esquecessem das verdades essenciais que haviam descoberto nos anos de convivência com ele. Buda sabia que todos ali iriam esquecer – sempre esquecem, a humanidade não tem feito outra coisa – que todos iriam esquecer das importantes experiências de rara consciência que haviam tido ali.

E Buda tinha razão, ele enfatizou aos discípulos – durante todos os anos de convivência – que considerava a religião um obstáculo à re-ligação do homem com o todo, e que não aprovava que fizessem uma religião em seu nome. Não adiantou. Bastou que ele fosse cremado e os “fiéis discípulos” se esqueceram integralmente do apelo do mestre; se empolgaram em discutir – e discutem até hoje – qual seria a verdadeira religião de Buda. Ouvimos falar até hoje, em noticiários, de monjes budistas que atacam mosteiros budistas de outras linhas por essa razão.

Esquecer parece ser uma função da memória humana. Na Grécia clássica havia o mito de Lete, o rio do esquecimento que todos atravessavam na ocasião da morte. Ao se ir para o outro lado, se deixava por aqui toda a lembrança da experiência terrena como maneira de começar a experiência do zero no outro lado. Faz sentido, você já imaginou um homem se apaixonando por uma mulher e descobrir que ela foi sua mãe em outra vida, como ficaria, ele a chamaria de mãe ou de esposa? E se a mulher descobre que o homem com quem resolveu dividir sua existência foi assassino de seus filhos em uma existência anterior? A “desmemória” tem sua razão de ser.

E, mesmo dentro de uma mesma vida, tem motivos para existir. É conveniente, por exemplo, esquecer broncas, injustiças e insensibilidades de nossos pais em relação a nós na primeira infância. As crianças vivem imitando seus pais em parte por que querem ser adultas, elas vêm aquela condição de potência deles e a almejam, isso denuncia que a infância não é tão confortável como costumamos pensar mais tarde. Todos nós experimentamos esse desconforto na infância mas, antes da idade adulta, passamos uma borracha em muitas dessas memórias e possibilitamos a impressão de uma infância dourada, “daqueles bons tempos”. É conveniente. É útil. Tem vantagens.

Porém, onde se ganha alguma coisa se perde outra. Se há alguma vantagem em esquecer, basta olhar com algum cuidado e descobrir, oculta por trás da vantagem, a desvantagem – ou as desvantagens. É inevitável, quando fechamos uma porta para que não entre um inimigo, o amigo também não pode mais entrar. Esquecendo-nos de cenas inconvenientes para evitar a dor e a infelicidade, esquecemos também de coisas essenciais para nossa felicidade e discernimento. Junto a momentos “desagradáveis” de nossa infância, esquecemos de nossa inocência, que ficou perdida em algum canto da memória, esquecemos de nossa capacidade de estar disponível, de coração aberto para o mundo e para o outro, esquecemos de nossa habilidade de aprender com o novo momento e, principalmente, esquecemos de onde viemos.

Explico melhor. Todos temos dentro de nós, em algum lugar recôndito e esquecido, a memória do “paraíso perdido”. Todos tivemos em um momento longínquo de nossas vidas a sensação de total pertencimento, a sensação de não haver diferença entre nós e o universo em volta, de vivermos em união total com o mundo e com a vida. Estivemos em um útero, onde o calor, o alimento, tudo enfim era cuidado e não tínhamos que nos defender do externo, não havia externo, éramos o mesmo organismo do útero. E todos passamos a vida perseguindo essa sensação novamente. É o que nos leva ao casamento, a possibilidade de ser um com o outro; é o que nos leva à religião, a possibilidade de voltar a ser um com o Universo; é o que nos leva a torcer por um clube de futebol, a possibilidade de ser um corpo único com aquela torcida, com aquela marca, é o que nos move à socialização.

Estamos todos em busca de reencontrar nossa “origem” perdida, o que Lao Tse chamava de “nosso rosto original”. E todos os que estão em busca espiritual, estão incluídos nesse rol; seja porque caminhos for, estão à procura de sua origem, esquecida em meio à trilha que os trouxe até o aqui e o agora; soterrada em algum canto da memória pelo entulho acumulado na trilha do passado e re-soterrada pelas experiências da roda-viva, alienante, do cotidiano atual. Em outras palavras, a busca da experiência espiritual, é a busca de uma experiência que já tivemos e guardamos em alguma gaveta esquecida da memória. Mas, como chegar a essa gaveta?

É disso que trata, em parte, a meditação. Acontece, que não importa o quanto você se afastou de sua natureza, ela continua a mesma. Sua natureza – o “paraíso perdido” – não foi perdida, nunca foi, ela foi esquecida. Mas, está aí, dentro de você, esperando pela hora em que você a re-conheça.

Você pode ter se esquecido de sua origem divina, mas não a perdeu. Você pode ter se esquecido de sua natureza, mas não a perdeu. Você pode ter se esquecido de sua origem, mas ela não esqueceu de você. Em algum lugar ela espera por você, de algum lugar, ela olha por você, de algum lugar, ela cuida de você, em algum lugar, ela é totalmente receptiva a você. E, todos nós ansiamos por experimentar uma receptividade incondicional, por isso, todos nós, em algum lugar lá dentro da memória, nos lembramos de que essa natureza permanece lá, intacta, nos esperando.

Esquecer-se, porém, tornou-se um hábito, um hábito antigo, e nós temos investido muito neste hábito; temos, por vezes, apostado todas as cartas nele, e, para viabilizar isso, foi fundamental esquecermo-nos de nós. O pior de todos os esquecimentos foi termos nos esquecido de nós. Lembramo-nos do pagamento do aluguel e nos esquecemos de nós, lembramo-nos do resultado do jogo de futebol e nos esquecemos de nossa natureza, lembramo-nos da missa e nos esquecemos do espírito vivo, pulsante dentro de nós, lembramo-nos da tabuada e nos esquecemos quem somos nós. Aprendemos a lembrar de tudo o que não é essencial e esquecer do essencial. Para lembrar de todas essas coisas não essenciais é, claro, necessário esquecer do ser; jogamos luz sobre elas e vamos para a sombra, para o esquecimento.

Sim, esquecer é um hábito antigo e com raízes profundas em você e em todos nós, mas você está aí, e pode mudá-lo. Você se pergunta, mas como, se não enxergo o mecanismo desse hábito, se não enxergo onde está a chave para mudá-lo, ou onde mesmo está a fechadura para enfiar a chave, ou nem mesmo onde está a porta que me separa de mim. As meditações podem ser importantes aliadas nesse momento. Elas podem levar à clareza interior, podem fazê-lo sentir a chave, a porta e, em seguida, o que está por trás da porta. A chave que você necessita tem um calor particular, tem vida, ela te chama de um certo lugar dentro de você, basta apurar o tato e ouvidos para encontrá-la.

Se você se entrega à meditação, em algum momento, chega à experiência que te leva à chave. Você descobre que de algum lugar de dentro de você, você está o tempo todo – como um cineasta – filmando, a si e a tudo o que acontece a você. Registrando. Meditar passa por encontrar com o que reside dentro de você, participar, estar presente durante a cena, consciente e ativamente, desse processo que acontece a você – de filmar a vida.

E quando isso acontece você percebe que ali dentro, há muitos filmes anteriores; quando você se aprofunda nesse processo, ganha acesso à filmografia de sua vida. E, ao mesmo tempo, tem acesso ao processo de filmar, em si. Você revoluciona o seu movimento de aprender novas informações; e dá um salto quântico na sua possibilidade de “colher” informações dentro da “caixa da memória”. Você tem acesso à sua “caixa preta”.

Alguns caminhos de meditação são mais diretamente ligados ao processo de memória que outros. Os sufis, em particular, baseiam suas meditações em movimentos chamados de Zikrs – palavra que quer dizer lembrar – para chegar a surati – lembrar do esquecido, mas nunca perdido. Os sufis dizem que seu caminho é de auto-lembrança, para eles não há nada a ser “alcançado” ou “conquistado”, mas para ser “descoberto”. E o caminho para esta descoberta é o resgate da memória, incluindo a memória de seu olfato refinado, que um dia lhe guiou e que agora guiará novamente até o jardim e o pomar de onde saem os aromas ensurdecedores e inebriantes de dentro de você, até onde há cheiro de terra fértil e molhada dentro de você. Para chegar lá, é preciso remover o entulho jogado sobre o solo. Uma vez removido, o solo fértil está lá, e você vai se surpreender em quão rápido voltam as flores, as mais olorosas.

No caminho de meditação escolhido para o curso “Memória & Rejuvenescimento Através da Meditação”, foram reunidas algumas das principais técnicas de meditação relacionadas à memória. O programa do curso parte de técnicas que restauram a memória física e a desenvolvem a seus níveis de excelência. Em seguida, ele se dedica a técnicas que sutilizam de maneira crescente a sensibilidade e a memória para que ela passe a servir de fio condutor, um “fio de Ariadne”, que nos leve ao centro de nosso castelo, que nos guie até nossos mais recônditos jardins internos. É experimentar para desfrutar. 

Pedro Tornaghi

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Participe do curso:

Memória e Rejuvenescimento Através da Meditação:

https://pedrotornaghi.com.br/?page_id=82

Leia também:

As Meditações da Pineal:

https://pedrotornaghi.com.br/?page_id=1135

12 comentários em “O Paraíso Perdido

  1. Obrigada pelo texto. Gostaria de saber mais a respeito do curso mencionado ao final. PAZ PROFUNDA.

  2. Estou querendo informações a respeito de curso de meditação, por favor me envie, grata, abraços Marilia

  3. Esse lugar do vazio, que encontro meditando, tem sido pra mim de um contentamento e clareza que faltam palavras pra explicar
    Lindo seu texto, seu trabalho…
    Em falando em memória, me lembrei, ao ver a sua foto, daquela viagem à Bahia para Salvador…nos anos 80, tenho boas lembranças de lá e da viagem e guardo um carinho enorme pelo Zé Henrique, um beijo grande,
    Malin

  4. Pedro, não tem como você dar um curso destes na nossa região da Barra e Recreio?

    Olá Carla,
    Infelizmente nesse momento tenho pouca disponibilidade de horários para assumir novos cursos, mas agradeço o interesse.
    Um grande abraço,
    Pedro

  5. Pedro… Lindo seu texto sobre o “Paraíso Esquecido.” Tendo (Nosso Céu) limpo e transparente, nossa Mente disciplinada. Ser um Ser Humano humilde e manso de coração como o de nosso Senhor-Deus. (Nosso Paraíso) e nos conectar com o Divino todos os dias, sempre que lembrar e quanto mais praticar a meditação, mais próximos estaremos da (Nossa Fonte Divina). Abandonando velhos hábitos, doutrinando nossas palavras, pensamentos e ações, descobriremos o Céu, o Paraíso e a Fonte Divina dentro de nós.
    Sou grata por me fazer refletir.
    “Namastê.”
    Bjsss Angela

  6. ACHEI EXCELENTE O TEXTO E O TEMA ME EMPOLGA MUITO. SE NA MEDITAÇÃO MERGULHARMOS PROFUNDAMENTE EM NOSSO INTERIOR, TENHO CERTEZA QUE SEREMOS A CADA DIA MELHOR EM NOSSAS ATITUDES E EM NOSSAS EMOÇÕES. PARABÉNS PELO TRABALHO E VOU FICAR ATENTA AOS PRÓXIMOS ARTIGOS. BJOS, MAGDA

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